[Desenho de arquitetura de uma nau de transporte de escravos] Grav. Anon.Negres a fond de calle. Des. Rugendas, Del. Deroi, Lit. de Engelmann. In.: RUGENDAS, Johann Moritz. Voyage pittoresque dans le Brésil. Paris: Engelmann, 1835. Tradução de: Das merkwurdigste aus der malerischen reise in Brasilien. Division 4e., Planche 1.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

SIDINEY CHALHOUB

2° CICLO DE PERGUNTAS AOS HISTORIADORES
NOVEMBRO DE 2008







Graduado em HISTÓRIA - Lawrence University (1979), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1984) e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1989). Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Campinas.
Endereço para acessar Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7738861749701123


Principais obras publicadas :

- Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo, Brasiliense, 1986.
- A história contada: capítulos de história social da literatura no Brasil (org., com Leonardo Affonso de Miranda Pereira). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998.
- Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial (5ª. impressão: 2006). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Em 1997 o livro Cidade febril recebeu o prêmio Jabuti de ensaio.
- Machado de Assis, historiador (2ª impressão: 2007). São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
- Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte (6ª. impressão: 2003). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


1-CPH - Como o senhor define a contribuição dos “brazilianistas”, historiadores como Mary C. Krasch, Stuart B. Schwart, Russel-Wood e Robert W. Slenes para a formação da historiografia da escravidão no Brasil?

CHALHOUB: Gostaria de acrescentar ao menos dois outros nomes a essa lista, pois foram autores de obras importantíssimas: Stanley Stein e Warren Dean. A marca do trabalho desses historiadores é a riqueza da pesquisa empírica, o alargamento das fontes possíveis para a história social e econômica num momento em que a historiografia brasileira sofria com a pouca profissionalização, agravada logo em seguida pelos longos anos da ditadura militar. Em especial, para a área de estudos sobre escravidão, alguns desses historiadores utilizaram de modo sistemático fontes cartoriais – inventários, testamentos, livros de escritura, processos cíveis e criminais-, cuja análise detalhada tornou mais complexo nosso entendimento do cotidiano das relações entre senhores e escravos.


2-CPH- O livro “Visões da Liberdade” (1990) nos dá a definição exata da contribuição do Senhor para a historiografia brasileira. É na firmeza da sua metodologia teórica que encontramos a “dimensão social do pensamento”?


CHALHOUB: O livro surgiu no contexto das revisões historiográficas em curso nos anos 1980, vinculadas ao processo de luta pelo fim da ditadura militar. Naquele momento, de ressurgimento dos movimentos sociais no país, havia percepção clara da pluralidade dos sujeitos políticos na sociedade. Este fator político e o fortalecimento da pós-graduação em história nas universidades públicas –resultado em parte da anistia em 1979 e do retorno de vários historiadores que andavam exilados- levaram vários historiadores aos arquivos em busca de fontes que nos permitissem perceber os escravos enquanto sujeitos políticos. Interessava-nos descrever e interpretar as políticas de domínio na escravidão, a violência e a exploração às quais estavam submetidos os cativos; ao mesmo tempo, queríamos entender o que os escravos faziam com o que faziam deles, como lidavam com as situações de arbítrio e violência que lhes eram impostas. O “protagonismo” (desculpem-me o neologismo, se o for) político dos escravos era pedra de toque de nossos estudos, talvez por estarmos sob o efeito da experiência política da década de 1980, eletrizante sempre, um desses raros momentos da história em que a crença no futuro parecia um achaque coletivo. O centenário da abolição, em 1988, marcado por eventos e discussões pelo país todo, foi determinante na virada dos paradigmas de interpretação da escravidão, virada da qual Visões da liberdade é apenas um dos testemunhos.


3-GEPCRAR - O historiador é primeiramente um grande observador e investigador. Como metodologicamente, o Senhor vê “Os Relatos de Viajantes do século XIX” e as imagens do cotidiano da escravidão no Brasil nesses relatos?

CHALHOUB: O melhor livro que conheço quanto aos cuidados necessários na utilização de relatos de viajantes no estudo do cotidiano da escravidão no Brasil é o de Robert Slenes, Na senzala, uma flor. O melhor exemplo às avessas –ou seja, de tudo que não se deve fazer ao interpretar tais fontes- é o livro de Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. Robert Slenes mostra com vagar e rigor como os relatos dos viajantes são importantes e utilizáveis desde que o historiador considere as mediações e os filtros de leitura necessários –em geral, são relatos marcados pelo preconceito cultural, pelo racismo, pelo eurocentrismo, pela pouca disponibilidade em entender a perspectiva do outro. No entanto, como nada disso justificaria a capitulação diante do pós-modernismo –a ideologia relativista, outrora triunfante, do neoliberalismo predador e delirante-, os testemunhos dos viajantes nos fornecem informações importantes sobre aspectos da vida material e do universo simbólico dos escravos à revelia de sua intenção em registrá-los e entendê-los. Como no caso de qualquer fonte histórica, basta saber lê-los com a precaução necessária, com o aparato crítico que é parte indispensável de nossa formação no ofício de historiador.

4-CPH - A historiografia brasileira, principalmente sobre a escravidão é sofisticada e muito ativa, participando de estudos, pesquisas, publicações e debates na África, Europa, América do Norte e Caribe. A formação acadêmica do Historiador e o diálogo com outras áreas do conhecimento humano são os principais ingredientes dessa moderna concepção de análise histórica?

CHALHOUB: A historiografia sobre escravidão produzida no Brasil faz parte de um contexto internacional de produção de conhecimento sobre o assunto. Faz tempo que atingimos a maioridade nessa área de estudos e dialogamos entre pares nos simpósios e fóruns internacionais sobre o tema. Nossa historiografia só não é mais influente lá fora devido ao fato de que ela é escrita em português, e sabemos que o inglês é o idioma do conhecimento hoje em dia, inclusive nas ciências humanas, assim como o é do Capital. Quando viajamos para esses simpósios internacionais, temos com freqüência a sensação de que muito do que se diz como novidade historiográfica lá fora é cousa já bem estudada e conhecida no Brasil, onde a riqueza das fontes disponíveis para o estudo da escravidão parece realmente excepcional, em comparação com a maioria dos outros países. Por outro lado, a nossa posição “periférica” faz com que conheçamos bem a produção historiográfica internacional, que por sua vez tende a nos ignorar, salvo em fóruns muito especializados.


5-CPH - O Senhor discorda dos argumentos de Leila Algranti que, no século XIX, o Estado criaria um aparato político-burocrático para interferir e manter o controle social dos negros na cidade do Rio de Janeiro. As relações pessoais entre escravos e senhores funcionavam como uma verdadeira “válvula de escapeda “Cidade Negra” ?

CHALHOUB: Parece-me que a crítica que faço à Leila Algranti em Visões da liberdade é em parte equivocada. Hoje em dia acho a metáfora que ela utiliza, do “feitor ausente”, mais correta do que me parecia à época em que redigi Visões da liberdade. A situação da política de domínio na escravidão urbana é bastante complexa, combinava estratégias pertinentes ao paternalismo –à privatização do controle social- com o incremento paulatino da intervenção do poder público nas relações entre senhores e escravos. Um exemplo precioso, que vem da minha pesquisa atual, é o de escravos que se apresentam às autoridades policiais, lá por volta dos anos 1850 e 1860, “para apadrinhar-se com o chefe de polícia” –segundo a expressão que aparece na documentação da polícia da Corte. Ou seja, em geral, são escravos que cometeram algum deslize, ao menos segundo a ótica de seus senhores, e procuram a polícia para que ela interceda junto aos proprietários para amenizar ou evitar o castigo. Quer dizer, querem que o poder público atue como seus padrinhos! Por um lado, a ambigüidade da fórmula, que remete ao mesmo tempo ao paternalismo e ao avanço do poder público sobre o universo privado dos senhores, testemunha a complexidade da situação; por outro lado, índice dessa mesma complexidade é a própria percepção dos escravos de uma situação política específica, que permite que eles recorram à polícia, ao poder público, para lidar com o arbítrio senhorial, às vezes para contestá-lo francamente.

6-CPH- O senhor faz uma das críticas mais contundentes a teoria do escravo-coisa em "Visões de Liberdade" (1990), chega a pedir desculpas por usar um parágrafo tão grande de Fernando Henrique Cardoso. No desfecho do livro deixa claro que o escravo rebelde foi mais ferramenta ideológica que exemplo prático no sistema escravista. Temos assim, a partir de seu livro e de outros publicados por volta do final da década de 1980 e início da de 1990, como "Negociação e Conflito" de 1988 (João José Reis e Eduardo Silva), um paradigma de análise histórica da escravidão no Brasil que buscou compreender a escravidão fora do caminho dicotômico da passividade e da rebeldia. Gostaria que o senhor fizesse um balanço sobre os principais fundamentos e desdobramentos dessa forma de analisar o sistema escravista e a relação senhor-escravo.

CHALHOUB: A crítica ao que chamei de teoria do escravo-coisa prosperou, ao que parece. Ao menos não me consta que haja historiadores ao redor, desses que investem muito tempo em arquivos (os outros, via de regra, condenam-se à irrelevância), dispostos a retomar a situação existente antes da virada historiográfica dos anos 1980. Também é verdade que a historiografia sofisticou-se muito desde aquele momento inicial de crítica historiográfica. Posso dar um exemplo no qual eu faço o papel de bobo da Corte, pois assim não ofendo nenhum colega. Ao fazer a pesquisa para a redação de Visões da liberdade, li dezenas de ações de liberdade de escravos. As minhas anotações desses processos eram todas direcionadas para entender as políticas de domínio senhorial e os modos de atuação dos escravos. Eu sequer anotava, por exemplo, os nomes dos curadores e/ou advogados dos escravos, muito menos ainda os nomes dos advogados dos senhores. Ademais, conhecia pouco, ou nem conhecia, boa parte da legislação citada e mobilizada nesses processos. Na minha banca de doutorado (Visões da liberdade foi antes tese de doutorado), enfrentei a crítica divertida e irônica de Warren Dean sobre este meu proceder. Ele disse, jocosamente, que estranhara a falta dos nomes dos advogados abolicionistas no meu texto; era uma questão pessoal, prosseguiu, porque ele sempre se orgulhara de um antepassado seu, chamado Sidney (!) Dean, que havia sido um abolicionista nos Estados Unidos. Ou seja, sempre irônico, concluía que a ênfase toda do meu texto na atuação dos escravos abalara a sua confiança no valor desse seu galhardo antepassado abolicionista. Hoje em dia, qualquer análise superficial da produção historiográfica sobre escravidão sabe que os historiadores aprenderam a valorizar a importância do processo de elaboração da legislação, das lutas em torno da aplicação das leis, dos conflitos e possibilidades abertas pelas controvérsias em sua interpretação. Desse modo, aquela perspectiva inicial que eu seguia, mais voltada para a estratégia dos escravos nas contendas legais, foi revista e bastante aperfeiçoada. Mas a tal teoria do escravo-coisa permanece cousa do passado...

7-CPH- Silvia Lara, em sua tese de livre-docência (Fragmentos setecentista: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. Tese de Livre Docência. Unicamp, Campinas, 2004.), afirma que "a submissão a uma pessoa 'de mais qualidade' estava diretamente relacionada ao domínio sobre outras, inferiores, e o aumento de poder só era concebido através de um registro que envolvia o consentimento e a concessão" (p.91). Gostaria que o senhor comentasse sobre esta produção mais recente que observa escravos e senhores como colaboradores, ou seja, teríamos submissos aceitando a dominação como estratégia e senhores distribuindo concessões para aumentar seu poder e cabedais, algo que João Fragoso explora em "FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de & SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. (Orgs.) Conquistadores e Negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América Lusa. Séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007. pp. 33-120.". Gostaria que o senhor se posicionasse diante desta produção historiográfica e de seus desdobramentos historiográficos e políticos. O primeiro de acordo com a sua visão de como deve ser abordada a chamada "submissão como estratégia" e o segundo do impacto que pode ter na sociedade brasileira apresentar uma história Negra onde a inteligência significava se submeter e servir para ter uma vida melhor.

CHALHOUB: Talvez as perspectivas de Silvia Lara e João Fragoso sejam diferentes sobre este assunto, mas ainda não li o texto do Fragoso que você cita. Li apenas uma ou duas entrevistas que ele deu recentemente, que achei bastante simplistas, pois o João é um intelectual bem mais sofisticado do que faz crer em tais entrevistas, quem sabe informadas apenas pelo intuito de intervir no debate sobre as políticas de ação afirmativa em vigor no país.

Quanto à Silvia Lara, ela não cabe na caricatura que a pergunta desenha (negros “colaboradores”, dispostos a se “submeter e servir para ter uma vida melhor”; nada disso está presente na passagem citada e caricaturada, muito menos no argumento por inteiro do livro mencionado). Nesse aspecto, continuo, quiçá ainda mais radicalmente do que antes, onde estava em 1989, ao concluir Visões da liberdade. Nada justifica a condescendência da posteridade, um possível sentimento nosso de superioridade, em relação aos negros escravos que lutaram por seus objetivos, que lidaram com a violência e a opressão incríveis da escravidão, por dentro mesmo das políticas de domínio às quais estavam submetidos. A experiência da maioria esmagadora dos trabalhadores é a impossibilidade de fugir ao sistema de exploração ao qual estão submetidos, pois o preço disso seria a morte, o aumento da humilhação, a tortura sob açoites e a masmorra. Que direito temos hoje em dia de condenar os negros, muitos milhares deles, que saíram às ruas, ou se juntaram nas fazendas, para comemorar o 13 de maio? Eram tolos todos, dispostos todos “a servir para ter uma vida melhor”? Francamente... A luta social por dentro da lei é uma alternativa necessária, entre outras, para confrontar a injustiça e a opressão. Por isso somos todos descendentes do 13 de maio –nós, que defendemos a existência e a expansão radical das iniciativas legais de ação afirmativa na sociedade brasileira atual, uma das mais racialmente excludentes do planeta, como se sabe.


Idealização:
Carlos Eduardo de Medeiros Gama
Leni Ferreira Theodoro




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