[Desenho de arquitetura de uma nau de transporte de escravos] Grav. Anon.Negres a fond de calle. Des. Rugendas, Del. Deroi, Lit. de Engelmann. In.: RUGENDAS, Johann Moritz. Voyage pittoresque dans le Brésil. Paris: Engelmann, 1835. Tradução de: Das merkwurdigste aus der malerischen reise in Brasilien. Division 4e., Planche 1.

domingo, 28 de dezembro de 2008

LUIZ CARLOS SOARES

3º CICLO DE PERGUNTAS AOS HISTORIADORES
Dezembro de 2008.










LUIZ CARLOS SOARES




Graduação em História (Licenciatura e Bacharelado) e mestrado pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Doutorado na University College London, Inglaterra (tendo defendida a tese intitulada Urban Slavery in Nineteenth-Century Rio de Janeiro, em janeiro de 1988.) Professor do Departamento de História da UFF.

Endereço para acessar Currículo Lattes:

Principais obras publicadas:

Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH/ Marco Zero, vol. 8, n° 16, março/agosto de 1988, pp.107-142.

Rameiras, Ilhoas, Polacas... A Prostituição no Rio de Janeiro do Século XIX. São Paulo, Ed. Ática, 1992.


Do Novo Mundo ao Universo Heliocêntrico: os Descobrimentos e a Revolução Copernicana. São Paulo, Ed. Hucitec, 1998.

A Albion Revisitada: Ciência, Religião e Comercialização do Lazer na Inglaterra do Século XVIII. Rio de Janeiro, Faperj – Ed. 7Letras, 2007.


O "Povo de Cam" Na Capital do Brasil: A Escravidão Urbana no Rio de Janeiro do Século XIX. Rio de Janeiro, FAPERJ - Ed. 7Letras, 2007.

Organizou a coletânea Da revolução Cientifica aBig-Business Science”: Cinco Ensaios de História da Ciência e da Tecnologia. São Paulo – Niterói, Ed. Hucitec - Eduff, 2001.



1- CPH - Ao longo do século XIX a sociedade carioca passou por períodos agitados: a chegada da família real, o fim do tráfico atlântico de escravos, o aumento do tráfico interprovincial, aumento da imigração e a guerra do Paraguai. O que a historiadora Keila Grimberg em “O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças.”-Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p.57. Chamou de “desmonte da escravidão enquanto instituição legitimada e amplamente disseminada.”. Como o senhor, historiador que trabalhou com a sociedade escravocrata do Século XIX, vê esses fatores e suas brutais mudanças na relação senhor e escravo?

LCS: Para início de conversa, gostaria de dizer que os fatores mencionados na pergunta seriam tópicos para um curso inteiro sobre a história da cidade do Rio de Janeiro (e pode-se dizer da sociedade brasileira) no século XIX. Portanto, uma resposta concisa sobre estes fatores é praticamente impossível, em virtude da complexidade de cada um deles, embora relacionados. Eu teria que escrever um artigo ou um ensaio para falar da articulação entre eles.
Por outro lado, não gosto de utilizar o termo “sociedade carioca” para o século XIX, pois este termo só se generalizaria como adjetivo do natural da cidade do Rio de Janeiro, ou de qualquer coisa relativa a esta cidade, somente no século XX, provavelmente depois dos anos 1920. O próprio Machado de Assis e outros escritores que viveram no século XIX se referiam aos habitantes da cidade como “fluminenses”. Há um conto de Machado de Assis em que ele se refere a uma ponte que um dia iria “unir os fluminenses de ambos os lados”. Um dos times de futebol mais antigos do Rio de Janeiro não foi chamado aleatoriamente de “Fluminense Football Club”. Isso é uma clara alusão a uma entidade clubística que pertencia à cidade do Rio de Janeiro.
Mas, voltando a nossa questão. Acho que há um grande divisor de águas na história da cidade do Rio de Janeiro e da sociedade escravista brasileira no século XIX, que é a cessação definitiva do tráfico de escravos africanos em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós. O “desmonte da escravidão” começou a se processar justamente a partir daí, em virtude da impossibilidade de reposição de mão de obra escrava em grande escala provocada pela cessação do tráfico africano. Com isso me alio a outros historiadores como Fernando Novaes, Luís Felipe Alencastro e Robert Conrad, que reconhecem uma importância estrutural para este tráfico de mão-de-obra cativa. Era através dele que se dava majoritariamente a reposição do braço escravo visto que a reprodução interna era insuficiente para atender às demandas das áreas escravistas em expansão, sobretudo no Sudeste cafeeiro. Embora alguns historiadores mais recentes tenham apontado, acertadamente, a existência do fenômeno da família escrava, o que indica, num certo nível, a possibilidade da reprodução interna da mão-de-obra cativa, creio que não se pode superestimar este fator e diminuir a importância do tráfico africano na reposição desta mão-de-obra e na reprodução estrutural do próprio escravismo.
Na realidade, a desestruturação da sociedade escravista se inicia com o fim do tráfico de escravos africanos e este foi o primeiro golpe nos interesses dos grupos escravistas dominantes, que evitaram a “débâcle” imediata com a alternativa do tráfico interno de escravos (inter e intra-provincial). Mas, mesmo assim o tráfico interno não conseguiu suprir as necessidades de mão-de-obra com a mesma eficácia que o tráfico africano. Inclusive, em virtude das dificuldades políticas que se colocaram para ele. Não resta a menor dúvida de que a partir da Lei Eusébio de Queirós, os setores que se opunham à escravidão e defendiam a substituição do braço cativo pelo trabalho livre foram se fortalecendo paulatinamente até conseguirem a aprovação da Lei Rio Branco de 1871, também conhecida como “Lei do Ventre Livre” por libertar todos os filhos de cativas, que inviabilizou a reprodução da escravidão por meios naturais e indicava o fim gradual da escravidão com a morte futura daqueles que se encontravam na condição de escravos. Pode-se dizer que a partir da Lei do Ventre Livre o Movimento Abolicionista cresceu consideravelmente, sobretudo aqueles setores que advogavam a abolição imediata e incondicional da escravidão em nosso país. Nos anos 1880, acompanhando a intensificação da crise do escravismo, o Movimento Abolicionista cresceu consideravelmente, inclusive com setores mais radicalizados que invadiam fazendas e promoviam fugas de cativos em massa, e pode-se dizer que esta luta acelerou o fim da escravidão em 1888. Obviamente, os setores escravistas ainda tentaram uma ação protelatória com a aprovação pelo Parlamento da Lei Saraiva-Cotegipe, em 1885, conhecida como “Lei dos Sexagenários”, que foi considerada uma grande “piada” pela imprensa e pelo Movimento Abolicionista. A intensificação da ação dos setores mais radicais do Abolicionismo, com a destruição de cafezais e canaviais, com a fuga de escravos e a formação de quilombos, levou à conversão dos fazendeiros do Oeste Novo paulista a optar pela solução da mão-de-obra imigrante nas áreas mais dinâmicas da cafeicultura e este foi o golpe final na escravidão e nos interesses das antigas áreas cafeicultoras do Vale do Paraíba e do Oeste Velho paulista. Pode-se dizer que, com isso, o “desmonte da escravidão” se completa, mas, ao mesmo tempo, condicionou o Pós-Abolição num horizonte que não foi sonhado pelos Abolicionistas, que pregavam uma série de reformas sociais que deveriam ser implementadas com o fim do cativeiro. Mas, estas ficaram apenas em seus sonhos.

2- CPH - Aos escravos não era permitido possuir sobrenome, firmar contrato, dispor de sua vida, testemunhar contra livres ou escolher seu trabalho ou empregador. Essas distorções legais somadas ao aumento da racialização das relações sociais e a hierarquização entre cativos, libertos e livres fizeram com que o status de livre fosse perseguido com sacrifício e estratégias por muitos cativos e seus familiares?


LCS: Primeiramente, estas restrições legais em relação aos escravos, que são apontadas na pergunta, não podem ser entendidas, na lógica da sociedade escravista”, como “distorções”. Elas o são dentro de um outro referencial crítico da escravidão e dos mecanismos de controle social (excludentes) existentes na sociedade escravista. Um outro detalhe os escravos podiam, sim, atuar como testemunhas nos processos criminais ou civis única e exclusivamente na condição de “testemunhas informantes”. Não podiam ser “testemunhas qualificadas”, condição esta reservada somente para os indivíduos livres.
Evidentemente, a liberdade legal foi um sonho perseguido por muitos cativos, que desenvolveram uma série de estratégias e aproveitaram-se das “brechas” permitidas pela sociedade escravista para consegui-la. Pode-se dizer que a liberdade legal – através da obtenção gratuita ou compra de alforria – era uma possibilidade efetiva da sociedade escravista, que funcionava como uma grande estratégia de controle social e senhorial e obtenção da aquiescência dos cativos em relação às situações do próprio cativeiro. A obtenção da carta de alforria por muitos escravos também esteve envolvida em situações de muita adversidade para eles, como por exemplo, a obtenção condicional de alforria que estabelecia uma liberdade não imediata, condicionada à morte do senhor ou algum parente dele, ou a libertação de escravos idosos ou doentes pelos senhores, que não queriam mais arcar com gastos em sua manutenção.
Embora o fenômeno da alforria não fosse nada desprezível na sociedade escravista, esta não era generalizada e somente uma parcela diminuta de cativos teve acesso a ela. Obviamente, poderemos “pinçar” uma série de exemplos de libertos ou ex-escravos, ou mesmo seus descendentes, que obtiveram algum sucesso profissional e boa condição financeira, mas estes foram extremamente minoritários. A grande maioria dos libertos permaneceu em condições de vida bastante adversas, desenvolvendo praticamente as mesmas tarefas profissionais que desenvolviam antes, habitando casebres, zungus ou cortiços, como na cidade do Rio de Janeiro, tendo uma parca dieta alimentar, vestindo-se maltrapilhamente, enfrentando doenças e mutilações decorrentes do trabalho pesado, etc. Para muitos libertos, a grande satisfação era poder calçar um par de sapatos, direito este que era vedado consuetudinariamente aos escravos e que se tornava um símbolo de liberdade para eles.
Outro elemento de restrição aos libertos era a cor de sua pele, fossem eles negros ou mulatos. Muitas vezes, libertos negros ou mulatos eram confundidos com escravos pela polícia simplesmente porque estes não eram efetivamente em número considerável, como também possuíam as cores dos indivíduos escravizados. A situação do cativeiro, ou de ter passado por ele, levou a elementos concretos de racialização que geraram uma série de preconceitos contra negros e mulatos, que sobreviveram ao fim da escravidão e estão presentes até os dias de hoje na sociedade brasileira.
No próprio século XIX, dizia-se que os negros e mulatos escravos só trabalhavam porque eram obrigados a isso. Para a ideologia escravista, o açoite e diversos instrumentos de suplício e tortura se constituíam em elementos fundamentais da “pedagogia senhorial”. Tão logo, viam-se distantes do cativeiro, os negros e mulatos recusavam a disciplina do trabalho e se voltavam para a vagabundagem ou a vadiagem. Posteriormente, esta argumentação seria crucial para justificar a imigração européia e a substituição de negros e mulatos em diversas áreas de trabalho pelos portugueses, espanhóis, italianos, alemães, etc., que vinham para as cidades e as áreas rurais brasileiras, desencadeando um processo de “branqueamento” em muitas regiões do país. No Pós-Abolição e no início do século XX, uma versão mais vulgar da nova ideologia criada iria associar o trabalho à “coisa de branco”. Passava-se a dizer quando alguém saia para o trabalho que “hoje é dia de branco”. Este estigma ainda acompanha a população afro-brasileira.


3- CPH - A historiografia atual faz restrições pertinentes e devidas aos Relatos dos Viajantes, pelo motivo que engloba uma visão preconceituosa e pronta do Brasil no século XIX. Em relação aos viajantes, como o senhor avalia a obra de John Armitage ou João Armitage: “A História do Brazil: Desde a chegada da Real Família de Bragança, em 1808, até a abdicação do Imperador D. Pedro I, em 1831” inglês que viveu de 1828 a 1835 na cidade do Rio de Janeiro?

LCS: Primeiramente, é importante assinalar que não somente os viajantes tinham uma “visão preconceituosa e pronta do Brasil”. Muitos brasileiros – quer dizer homens livres e letrados nascidos no país – compartilhavam desta mesma visão, pois tinham os mesmos referenciais eurocêntricos dos viajantes. Durante boa parte do século XIX, muitos liberais brasileiros praticamente atribuíam os “males da escravidão” e da “nossa sociedade” aos próprios negros africanos, que para eles eram “incultos”, “incapazes para o progresso”, “lascivos”, etc. Praticamente, eximiam os brancos de origem européia de responsabilidades sobre os efeitos que a escravidão provocada no país e esta sua visão foi a base para as políticas imigrantistas da segunda metade do século e da substituição do braço escravo por trabalhadores europeus em diversas atividades rurais e urbanas.
No caso de John Armitage, penso que há uma diferença em relação aos relatos de “viajantes” que vieram para o Brasil como turistas e permaneceram algum tempo. Mesmo entre os “viajantes”, existem aqueles que não podem ser considerados dessa forma, pois viveram no país por muitos anos, como John Luccock, Jean-Baptiste Debret Johann Moritz Rugendas, etc. O próprio Armitage viveu no país por quase oito anos. Mesmo que estes estrangeiros tenham elaborado relatos com impressões sobre o Brasil com uma perspectiva eurocêntrica, seus livros e trabalhos são, para mim, fontes importantíssimas de consulta no que se relaciona ao entendimento de diversos aspectos da vida brasileira. Obviamente, o historiador profissional tem que se utilizar de todo o seu instrumental teórico-metodológico para obter informações relevantes destas fontes (como aliás de todos os outros tipos de fontes) que podem ser valiosas para a análise que ele realiza.
A diferença entre Armitage e os outros “viajantes” se situa no fato de que ele não procurou fazer apenas um relato das “coisas pitorescas” ou das “excentricidades” de um país escravista, mas procurou elaborar uma narrativa histórica com base no entendimento de história que se tinha no início do século XIX, não muito diferente, na minha opinião, da narrativa de nomes consagrados da historiografia deste século. Portanto, vejo uma dupla possibilidade na utilização da obra de Armitage: como fonte de informação histórica (suscetível como todas as outras fontes aos rigores da crítica histórica) e como objeto de análise historiográfica, por se tratar de um livro que se coloca no universo da narrativa histórica.


4- CPH - No livro do senhor O “POVO DE CAM” Na CAPITAL DO BRASIL: A Escravidão Urbana no Rio de Janeiro do Século XIX. Rio de Janeiro, Faperj -Editora 7Letras, 2007. Logo na Introdução do livro na página 18, o senhor define os futuros estudos que os novos Historiadores devem abordar sobre a escravidão na cidade do Rio de Janeiro em todo século XIX, no antes e depois da Abolição em 1888. O senhor analisa a contribuição de Historiadores como Mary Karasch e Leila Algranti, além das “críticas e revisões a luz do conhecimento proporcionado por novas fontes ou novas ou diferentes abordagens teórico-metodológicas.” Como o senhor vê esse refino e sofisticação da Historiografia brasileira sobre a escravidão urbana?

LCS: Os três primeiros trabalhos que problematizaram a escravidão urbana no Rio de Janeiro foram os de Mary Karasch, Leila Algranti e a minha tese de doutoramento, defendida no University College London em 1988. O livro de Mary Karasch aborda diversos aspectos da escravidão no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX e o de Leila Algranti numa conjuntura mais específica, que foi o Período Joanino. Na minha tese, que se transformou quase vinte anos depois no livro O “Povo de Cam” na capital do Brasil, procurou estudar diversos aspectos da escravidão na cidade a partir do “divisor de águas” representado pela cessação definitiva do tráfico negreiro em 1850. Nesse sentido, procurei abordar a estrutura e a dinâmica da escravidão no Rio de Janeiro em duas conjunturas diferentes, quer dizer, antes e depois da abolição do tráfico africano.
Na ocasião das comemorações do centenário da abolição da escravidão no Brasil, em 1988, muitos trabalhos foram publicados e apresentados em simpósios e congressos abordando os mais diversificados aspectos da escravidão urbana em diversas cidades do país, trazendo novas problemáticas e novas abordagens de estudo. Esse movimento continuou posteriormente e existe ainda hoje. Obviamente, vejo isso com muitos bons olhos, como uma tendência historiográfica bastante positiva.
Entretanto, uma das razões que me motivaram a publicar o meu livro, quase vinte anos depois dele ter sido apresentado como tese de doutoramento, foi a inexistência de trabalhos mais recentes que procurassem abordar a escravidão urbana na mesma perspectiva mais global, que eu adotei (e também Karasch e Algranti), enfatizando o mercado interno de escravos, a população cativa, as diversas atividades econômicas, as tentativas de controle social, a rebeldia escrava, a manumissão e a liberdade, etc.
Desse modo, achei que ainda existia um “espaço” para a divulgação do meu estudo e, em muitos aspectos, ele se apresenta bastante atual, pois muitos dos novos trabalhos (ou a produção historiográfica mais recente no campo da escravidão urbana) se constituem de estudos mais específicos ou relacionados a aspectos particulares do fenômeno da escravidão nas cidades. Portanto, sinto falta de trabalhos que articulem uma perspectiva de entendimento mais global da escravidão urbana (ou mesmo rural) com as abordagens teórico-metodológicas renovadas dos estudos específicos mais recentes. Talvez, esta seja a tarefa dos historiadores de hoje e do futuro interessados na problemática da escravidão.



5-CPH - No livro do senhor O “POVO DE CAM”, na página 266 o senhor afirma que “as autoridades policiais estavam em alerta para a possibilidade de agentes estrangeiros, particularmente às Sociedades Antiescravistas da Grã-Bretanha, infiltrarem-se no país e insuflarem os escravos do Rio de Janeiro e de outras localidades à rebelião.” Qual a analise do senhor sobre a política da Grã-Bretanha na proibição do tráfico de escravos no século XIX e depois na partilha do Continente africano?

LCS: A perspectiva de análise que tenho defendido, há algum tempo, se relaciona ao argumento da necessidade da Grã-Bretanha proibir o tráfico atlântico de escravos porque este, em virtude da guerra contínua travada em diversas áreas do continente africano, era um elemento de desestruturação populacional de diversas sociedades deste continente. A escravização em massa de africanos se dava fundamentalmente através das guerras de estados mais organizados e mais fortes militarmente contra outros estados e comunidades, em sua maioria, sem os mesmos níveis de organização política e militar. Em geral, os traficantes europeus de diversas nacionalidades recebiam os africanos escravizados em suas feitorias no litoral do continente, onde realizavam o escambo e pagavam aos chefes traficantes africanos através de aguardente, rum, fumo, tecidos, quinquilharias, armas e produtos diversos.
Na segunda metade do século XVIII, inclusive por conta do crescimento exponencial da produção nas áreas escravistas das Américas para atendimento da crescente demanda dos mercados europeus, o tráfico atlântico de escravos se tornou dramático e as guerras de escravização no continente africano assumiram uma dimensão jamais vista, sobretudo por conta da utilização de armas de fogo (obtidas no escambo com os traficantes europeus) pelos estados escravizadores. Entretanto, muitas sociedades e comunidades resistiam à ação dos “preadores”, o que aumentava enormemente a mortandade. Há estimativas que apontam que, para cada africano aprisionado, escravizado e trazido para as Américas, cinco africanos ficavam “pelo caminho”. Quer dizer, cinco deles morriam na resistência à ação dos “preadores” ou na própria travessia atlântica.
Por outro lado, há estimativas de historiadores que apontam uma variação de 10 a 15 milhões de escravos africanos que foram introduzidos no continente americano dos séculos XVI ao XIX, o que indicaria, por sua vez, a morte de 50 a 75 milhões de africanos neste processo de resistência à ação dos escravizadores. Isso significa que o tráfico atlântico de escravos foi responsável por um dos maiores genocídios da história e muitas populações da África de hoje merecem muito mais do que um “pedido de desculpas” por parte dos países que outrora traficavam ou recebiam escravos deste continente.
No fim do século XVIII e início do século XIX, as autoridades da Grã-Bretanha perceberam o enorme entrave representando pelo tráfico de escravos para a expansão dos seus interesses comerciais e estratégicos na África. O tráfico de escravos fomentava a guerra crescente e esta a desestabilização populacional ou a desestruturação de sociedades e comunidades africanas. Portanto, era importante acabar com o tráfico atlântico para acabar com a guerra e o quadro populacional caótico do continente. É claro que as populações africanas não se transformariam automaticamente em “consumidores” dos produtos britânicos. Mas, estas populações, sem o quadro de guerra permanente, poderiam ser fixadas em seus territórios e desenvolver atividades econômicas mais adequadas aos interesses do comércio britânico, produzindo matérias-primas ou gêneros alimentícios. Para as forças militares britânicas penetrarem no continente africano, teriam que acabar primeiramente com o tráfico de escravos e, em segundo lugar, efetuar a conquista e a ocupação efetiva de diversos territórios, submetendo-os ao seu domínio colonial.
Este processo não foi tão simples assim e a Grã-Bretanha teve que enfrentar, ao logo do século XIX, diversas resistências tanto dos estados escravizadores, dos traficantes atlânticos, dos plantadores escravistas americanos, como também das demais potências européias que procuravam participar também da “partilha” da África. Os britânicos conseguiram tomar a cidade de Lagos, na Nigéria, somente em 1862, e as regiões do Travaal e Orange, na África do Sul, no início do século XX, quando saíram vitoriosos na Guerra dos Boers. Estas áreas se tornaram pontos importantes do domínio colonial britânico no continente africano, mas antes foi preciso que o tráfico de escravos e a própria escravidão fossem paulatinamente abolidos no continente americano.


Idealização e Coordenação:

Carlos Eduardo de Medeiros Gama,

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2489126638730946

Leni Ferreira Theodoro, Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6828291289896778

E-MAIL DO CICLO DE PERGUNTAS AOS HISTORIADORES:

cphbr@ig.com.br

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

SIDINEY CHALHOUB

2° CICLO DE PERGUNTAS AOS HISTORIADORES
NOVEMBRO DE 2008







Graduado em HISTÓRIA - Lawrence University (1979), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1984) e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1989). Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Campinas.
Endereço para acessar Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7738861749701123


Principais obras publicadas :

- Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São Paulo, Brasiliense, 1986.
- A história contada: capítulos de história social da literatura no Brasil (org., com Leonardo Affonso de Miranda Pereira). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998.
- Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial (5ª. impressão: 2006). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Em 1997 o livro Cidade febril recebeu o prêmio Jabuti de ensaio.
- Machado de Assis, historiador (2ª impressão: 2007). São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
- Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte (6ª. impressão: 2003). 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


1-CPH - Como o senhor define a contribuição dos “brazilianistas”, historiadores como Mary C. Krasch, Stuart B. Schwart, Russel-Wood e Robert W. Slenes para a formação da historiografia da escravidão no Brasil?

CHALHOUB: Gostaria de acrescentar ao menos dois outros nomes a essa lista, pois foram autores de obras importantíssimas: Stanley Stein e Warren Dean. A marca do trabalho desses historiadores é a riqueza da pesquisa empírica, o alargamento das fontes possíveis para a história social e econômica num momento em que a historiografia brasileira sofria com a pouca profissionalização, agravada logo em seguida pelos longos anos da ditadura militar. Em especial, para a área de estudos sobre escravidão, alguns desses historiadores utilizaram de modo sistemático fontes cartoriais – inventários, testamentos, livros de escritura, processos cíveis e criminais-, cuja análise detalhada tornou mais complexo nosso entendimento do cotidiano das relações entre senhores e escravos.


2-CPH- O livro “Visões da Liberdade” (1990) nos dá a definição exata da contribuição do Senhor para a historiografia brasileira. É na firmeza da sua metodologia teórica que encontramos a “dimensão social do pensamento”?


CHALHOUB: O livro surgiu no contexto das revisões historiográficas em curso nos anos 1980, vinculadas ao processo de luta pelo fim da ditadura militar. Naquele momento, de ressurgimento dos movimentos sociais no país, havia percepção clara da pluralidade dos sujeitos políticos na sociedade. Este fator político e o fortalecimento da pós-graduação em história nas universidades públicas –resultado em parte da anistia em 1979 e do retorno de vários historiadores que andavam exilados- levaram vários historiadores aos arquivos em busca de fontes que nos permitissem perceber os escravos enquanto sujeitos políticos. Interessava-nos descrever e interpretar as políticas de domínio na escravidão, a violência e a exploração às quais estavam submetidos os cativos; ao mesmo tempo, queríamos entender o que os escravos faziam com o que faziam deles, como lidavam com as situações de arbítrio e violência que lhes eram impostas. O “protagonismo” (desculpem-me o neologismo, se o for) político dos escravos era pedra de toque de nossos estudos, talvez por estarmos sob o efeito da experiência política da década de 1980, eletrizante sempre, um desses raros momentos da história em que a crença no futuro parecia um achaque coletivo. O centenário da abolição, em 1988, marcado por eventos e discussões pelo país todo, foi determinante na virada dos paradigmas de interpretação da escravidão, virada da qual Visões da liberdade é apenas um dos testemunhos.


3-GEPCRAR - O historiador é primeiramente um grande observador e investigador. Como metodologicamente, o Senhor vê “Os Relatos de Viajantes do século XIX” e as imagens do cotidiano da escravidão no Brasil nesses relatos?

CHALHOUB: O melhor livro que conheço quanto aos cuidados necessários na utilização de relatos de viajantes no estudo do cotidiano da escravidão no Brasil é o de Robert Slenes, Na senzala, uma flor. O melhor exemplo às avessas –ou seja, de tudo que não se deve fazer ao interpretar tais fontes- é o livro de Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. Robert Slenes mostra com vagar e rigor como os relatos dos viajantes são importantes e utilizáveis desde que o historiador considere as mediações e os filtros de leitura necessários –em geral, são relatos marcados pelo preconceito cultural, pelo racismo, pelo eurocentrismo, pela pouca disponibilidade em entender a perspectiva do outro. No entanto, como nada disso justificaria a capitulação diante do pós-modernismo –a ideologia relativista, outrora triunfante, do neoliberalismo predador e delirante-, os testemunhos dos viajantes nos fornecem informações importantes sobre aspectos da vida material e do universo simbólico dos escravos à revelia de sua intenção em registrá-los e entendê-los. Como no caso de qualquer fonte histórica, basta saber lê-los com a precaução necessária, com o aparato crítico que é parte indispensável de nossa formação no ofício de historiador.

4-CPH - A historiografia brasileira, principalmente sobre a escravidão é sofisticada e muito ativa, participando de estudos, pesquisas, publicações e debates na África, Europa, América do Norte e Caribe. A formação acadêmica do Historiador e o diálogo com outras áreas do conhecimento humano são os principais ingredientes dessa moderna concepção de análise histórica?

CHALHOUB: A historiografia sobre escravidão produzida no Brasil faz parte de um contexto internacional de produção de conhecimento sobre o assunto. Faz tempo que atingimos a maioridade nessa área de estudos e dialogamos entre pares nos simpósios e fóruns internacionais sobre o tema. Nossa historiografia só não é mais influente lá fora devido ao fato de que ela é escrita em português, e sabemos que o inglês é o idioma do conhecimento hoje em dia, inclusive nas ciências humanas, assim como o é do Capital. Quando viajamos para esses simpósios internacionais, temos com freqüência a sensação de que muito do que se diz como novidade historiográfica lá fora é cousa já bem estudada e conhecida no Brasil, onde a riqueza das fontes disponíveis para o estudo da escravidão parece realmente excepcional, em comparação com a maioria dos outros países. Por outro lado, a nossa posição “periférica” faz com que conheçamos bem a produção historiográfica internacional, que por sua vez tende a nos ignorar, salvo em fóruns muito especializados.


5-CPH - O Senhor discorda dos argumentos de Leila Algranti que, no século XIX, o Estado criaria um aparato político-burocrático para interferir e manter o controle social dos negros na cidade do Rio de Janeiro. As relações pessoais entre escravos e senhores funcionavam como uma verdadeira “válvula de escapeda “Cidade Negra” ?

CHALHOUB: Parece-me que a crítica que faço à Leila Algranti em Visões da liberdade é em parte equivocada. Hoje em dia acho a metáfora que ela utiliza, do “feitor ausente”, mais correta do que me parecia à época em que redigi Visões da liberdade. A situação da política de domínio na escravidão urbana é bastante complexa, combinava estratégias pertinentes ao paternalismo –à privatização do controle social- com o incremento paulatino da intervenção do poder público nas relações entre senhores e escravos. Um exemplo precioso, que vem da minha pesquisa atual, é o de escravos que se apresentam às autoridades policiais, lá por volta dos anos 1850 e 1860, “para apadrinhar-se com o chefe de polícia” –segundo a expressão que aparece na documentação da polícia da Corte. Ou seja, em geral, são escravos que cometeram algum deslize, ao menos segundo a ótica de seus senhores, e procuram a polícia para que ela interceda junto aos proprietários para amenizar ou evitar o castigo. Quer dizer, querem que o poder público atue como seus padrinhos! Por um lado, a ambigüidade da fórmula, que remete ao mesmo tempo ao paternalismo e ao avanço do poder público sobre o universo privado dos senhores, testemunha a complexidade da situação; por outro lado, índice dessa mesma complexidade é a própria percepção dos escravos de uma situação política específica, que permite que eles recorram à polícia, ao poder público, para lidar com o arbítrio senhorial, às vezes para contestá-lo francamente.

6-CPH- O senhor faz uma das críticas mais contundentes a teoria do escravo-coisa em "Visões de Liberdade" (1990), chega a pedir desculpas por usar um parágrafo tão grande de Fernando Henrique Cardoso. No desfecho do livro deixa claro que o escravo rebelde foi mais ferramenta ideológica que exemplo prático no sistema escravista. Temos assim, a partir de seu livro e de outros publicados por volta do final da década de 1980 e início da de 1990, como "Negociação e Conflito" de 1988 (João José Reis e Eduardo Silva), um paradigma de análise histórica da escravidão no Brasil que buscou compreender a escravidão fora do caminho dicotômico da passividade e da rebeldia. Gostaria que o senhor fizesse um balanço sobre os principais fundamentos e desdobramentos dessa forma de analisar o sistema escravista e a relação senhor-escravo.

CHALHOUB: A crítica ao que chamei de teoria do escravo-coisa prosperou, ao que parece. Ao menos não me consta que haja historiadores ao redor, desses que investem muito tempo em arquivos (os outros, via de regra, condenam-se à irrelevância), dispostos a retomar a situação existente antes da virada historiográfica dos anos 1980. Também é verdade que a historiografia sofisticou-se muito desde aquele momento inicial de crítica historiográfica. Posso dar um exemplo no qual eu faço o papel de bobo da Corte, pois assim não ofendo nenhum colega. Ao fazer a pesquisa para a redação de Visões da liberdade, li dezenas de ações de liberdade de escravos. As minhas anotações desses processos eram todas direcionadas para entender as políticas de domínio senhorial e os modos de atuação dos escravos. Eu sequer anotava, por exemplo, os nomes dos curadores e/ou advogados dos escravos, muito menos ainda os nomes dos advogados dos senhores. Ademais, conhecia pouco, ou nem conhecia, boa parte da legislação citada e mobilizada nesses processos. Na minha banca de doutorado (Visões da liberdade foi antes tese de doutorado), enfrentei a crítica divertida e irônica de Warren Dean sobre este meu proceder. Ele disse, jocosamente, que estranhara a falta dos nomes dos advogados abolicionistas no meu texto; era uma questão pessoal, prosseguiu, porque ele sempre se orgulhara de um antepassado seu, chamado Sidney (!) Dean, que havia sido um abolicionista nos Estados Unidos. Ou seja, sempre irônico, concluía que a ênfase toda do meu texto na atuação dos escravos abalara a sua confiança no valor desse seu galhardo antepassado abolicionista. Hoje em dia, qualquer análise superficial da produção historiográfica sobre escravidão sabe que os historiadores aprenderam a valorizar a importância do processo de elaboração da legislação, das lutas em torno da aplicação das leis, dos conflitos e possibilidades abertas pelas controvérsias em sua interpretação. Desse modo, aquela perspectiva inicial que eu seguia, mais voltada para a estratégia dos escravos nas contendas legais, foi revista e bastante aperfeiçoada. Mas a tal teoria do escravo-coisa permanece cousa do passado...

7-CPH- Silvia Lara, em sua tese de livre-docência (Fragmentos setecentista: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. Tese de Livre Docência. Unicamp, Campinas, 2004.), afirma que "a submissão a uma pessoa 'de mais qualidade' estava diretamente relacionada ao domínio sobre outras, inferiores, e o aumento de poder só era concebido através de um registro que envolvia o consentimento e a concessão" (p.91). Gostaria que o senhor comentasse sobre esta produção mais recente que observa escravos e senhores como colaboradores, ou seja, teríamos submissos aceitando a dominação como estratégia e senhores distribuindo concessões para aumentar seu poder e cabedais, algo que João Fragoso explora em "FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de & SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. (Orgs.) Conquistadores e Negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América Lusa. Séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007. pp. 33-120.". Gostaria que o senhor se posicionasse diante desta produção historiográfica e de seus desdobramentos historiográficos e políticos. O primeiro de acordo com a sua visão de como deve ser abordada a chamada "submissão como estratégia" e o segundo do impacto que pode ter na sociedade brasileira apresentar uma história Negra onde a inteligência significava se submeter e servir para ter uma vida melhor.

CHALHOUB: Talvez as perspectivas de Silvia Lara e João Fragoso sejam diferentes sobre este assunto, mas ainda não li o texto do Fragoso que você cita. Li apenas uma ou duas entrevistas que ele deu recentemente, que achei bastante simplistas, pois o João é um intelectual bem mais sofisticado do que faz crer em tais entrevistas, quem sabe informadas apenas pelo intuito de intervir no debate sobre as políticas de ação afirmativa em vigor no país.

Quanto à Silvia Lara, ela não cabe na caricatura que a pergunta desenha (negros “colaboradores”, dispostos a se “submeter e servir para ter uma vida melhor”; nada disso está presente na passagem citada e caricaturada, muito menos no argumento por inteiro do livro mencionado). Nesse aspecto, continuo, quiçá ainda mais radicalmente do que antes, onde estava em 1989, ao concluir Visões da liberdade. Nada justifica a condescendência da posteridade, um possível sentimento nosso de superioridade, em relação aos negros escravos que lutaram por seus objetivos, que lidaram com a violência e a opressão incríveis da escravidão, por dentro mesmo das políticas de domínio às quais estavam submetidos. A experiência da maioria esmagadora dos trabalhadores é a impossibilidade de fugir ao sistema de exploração ao qual estão submetidos, pois o preço disso seria a morte, o aumento da humilhação, a tortura sob açoites e a masmorra. Que direito temos hoje em dia de condenar os negros, muitos milhares deles, que saíram às ruas, ou se juntaram nas fazendas, para comemorar o 13 de maio? Eram tolos todos, dispostos todos “a servir para ter uma vida melhor”? Francamente... A luta social por dentro da lei é uma alternativa necessária, entre outras, para confrontar a injustiça e a opressão. Por isso somos todos descendentes do 13 de maio –nós, que defendemos a existência e a expansão radical das iniciativas legais de ação afirmativa na sociedade brasileira atual, uma das mais racialmente excludentes do planeta, como se sabe.


Idealização:
Carlos Eduardo de Medeiros Gama
Leni Ferreira Theodoro




ANTÓNIO MANUEL HESPANHA

1° CICLO DE PERGUNTAS AOS HISTORIADORES
Outubro de 2008




ANTÓNIO MANUEL HESPANHA

Nasceu na cidade de Coimbra, Portugal em 1945. Professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Investigador Honorário do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Membro dos Conselhos Científicos da Fundação para a Ciência e Tecnologia (Portugal), Maison des Sciences de l’Homme. Director do CEDIS, Centro de Estudos sobre Direito em Sociedade, da FD-UNL e ex-membro estrangeiro eleito do Conseil National pour la Recherche Scientifique (França). Ex-Comissário Geral para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses. Membro do Instituto Histórico-Geográfico do Rio de Janeiro. Grande Oficial da Ordem de Santiago. Premio Universidade de Coimbra, 2005 (ex-aequo com Luis Miguel Cintra).

Obras:

A História do Direito na História Social, 1977;
História das Instituições. Épocas medieval e moderna, 1982; Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime (pref. e seleção de textos), 1984; Poder e Instituições no Antigo Regime (Guia de Estudo), 1992; Lei, Justiça, Litigiosidade. História e prospectiva, 1993;
La gracia del derecho, 1993; As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político (Portugal, séc. XVIII), 1994 (ed. cast. 1989);
História de Portugal moderno. Político-institucional, 1995 (ed. brasileira, 2006);
Cultura Jurídica Europeia. Síntese de um milénio, Europa-América, 1996 (ed. ital. Bologna, Il Mulino, 2000; ed. cast. Madrid, Taurus, 2002; ed. brasileira, Florianópolis, Fund. Boiteux, FD-UFSC, 2005);
Panorama da História Institucional e Jurídica de Macau, Macau, 1995; Há 500 anos. Três anos de comemorações dos descobrimentos portugueses, 1999;
O orientalismo em Portugal. Catálogo da exposição (guião, comissariado científico e texto introdutório), 2000;
O Milénio português (sec. XVII), 2001;
Feelings of justice in the Chinese community of Macao (coord. e autor), 2003;
História militar de Portugal, vol. II (Época moderna) (coord.), 2004); Guiando a mão invisível Direito, Estado e lei no liberalismo monárquico português, 2004 (ed. cast. adaptada em preparação);
O caleidoscópio do direito. O direito e a justiça no mundo dos nossos dias, Coimbra, Almedina, 2007;
O caleidoscópio do Antigo Regime (Brazilian edition, Editora Alameda, São Paulo [em edição]).
Translator of Franz Wieacker, John Gilissen, A. Kaufmann e W. Hassemer, Horst Dippel, van Caenegem. Coord. (em colab. com Cristina Nogueira da Silva) do Projecto “Arquivos Digitais da História do Direito Português” (digitalização de toda a literatura jurídica [direitos constitucional, administrativo, penal, financeiro e fiscal, civil, eclesiástico] académica portuguesa do séc. XIX; em realização).
Outros dados pessoais, artigos e textos estão disponíveis no site: http://www.hespanha.net/ .

Curriculm Vitae: http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/cv/amh_CV_127_00%202006%20CV%20Síntese%20(portugues).doc



1. CPH - Como o senhor vê a contribuição dos historiadores portugueses para o desenvolvimento da atual historiografia brasileira?

AMH: A historiografia brasileira de há muito que adquiriu um grau de sofisticação que igualou ou mesmo francamente ultrapassou a portuguesa, em muitos domínios. Isto tem a ver, nomeadamente com questões de massa crítica, pois o número de historiadores brasileiros é muitíssimo superior ao dos portugueses. Mas também com uma tendência muito positiva para a utilização de modelos teóricos explícitos e reflectidos, que ultrapassem o positivismo e o narrativismo ingénuo., bem como com uma notável abertura à historiografia estrangeira, paradoxalmente com algum défice em relação à historiografia latino americana, frequentemente recebida através de uma mediação desnecessária da norte americana. É neste contexto que tem que ser avaliada a influência da historiografia portuguesa. Como não podia deixar de ser, ela é sensível para o período colonial. Menos para o séc. XIX e XX, onde poderia ter também um papel útil, dada a permanência das semelhanças de perfil entre as duas histórias. A historiografia portuguesa não é tão rica que constitua um ponto necessário de referência. Mas pode exercer uma influência benéfica em dois pontos, pelo menos. Por um lado, trata de arranjos culturais, sociais e institucionais que foram matrizes muito importantes para os arranjos brasileiros e que, na sua forma mais canónica, se estudam melhor em Portugal do que no Brasil. O seu conhecimento pode atenuar um tópico corrente no Brasil – e que prejudica mais do que ajuda – e que é a fixação na “especificidade brasileira”. Na verdade, o que há frequentemente na sociedade brasileira do passado são variações próprias de um modelo mais cosmopolita; e esse modelo é o da Europa do Sul de então e, muito especialmente, o modelo social e mental português, que é francamente reconhecível nas instituições, nas formas mentais, na arquitectura religiosa (e mesmo na civil e popular), no trato social. Menos, na organização económica e nos aspectos muito ligados a factores mesológicos. Sem preconceitos pós-coloniais e descontando o tom nacionalista e “imperial” da historiografia portuguesa mais antiquada, ler os historiadores portugueses bons pode ser muito esclarecedor.


2. CPH - Como o senhor descreveria sua contribuição pessoal para a historiografia portuguesa?

AMH: A minha contribuição pessoal insere-se no que acabo de dizer. Creio que tenho sido útil ao chamara a atenção para as raízes que a história institucional e jurídica brasileira tem nos arranjos que, nesses domínios, vigoravam em Portugal, desde a idade média. Mas, por outro lado, tenho reagido contra um certo amesquinhamento que alguma historiografia brasileira faz em relação à autonomia e capacidade criativa local, ao brasileirismo, como se tudo fosse comandado pela metrópole e a colónia fosse uma entidade amorfa e totalmente expropriada de vida institucional e política própria. Como todas as fontes locais testemunham a autonomia da vida periférica em relação ao centro – tal e qual como acontecia no próprio pequeno Portugal – tenho pensado se este discurso obsessivo de um obsessivo estatuto “colonial” não resulta de um prolongamento anacrónico de uma historiografia que continua a celebrar a independência, enredada em também anacrónicos sentimentos “anti-colonialistas”. Durante muito tempo, Portugal também conheceu essa doença nacionalista, ao estudar as suas relações históricas com a Espanha, no período filipino.



3. CPH - Até os anos 1980, a historiografia brasileira focalizou o período colonial pelo discurso de uma sociedade enquanto transplante deformado da matriz européia, ou sua versão perversa, com os contornos definidos no interior do absolutismo português. Pelo viés de uma posição inferior e desordenada dentro do modelo da exploração colonial. Com que perspectiva o senhor encara as mudanças da historiografia brasileira?

AMH: A mudança não tem sido toda ela de idêntico perfil ... felizmente. Há quem tenha aceite considerar a hipótese de uma matriz fundamentalmente europeia, embora dotada de um forte dinamismo próprio; há quem tenha continuado a insistir na especificidade brasileira, no “modelo escravista” ou no “miserabilismo colonial” e há quem procure explorar vias intermédias. Acho que o ponto ainda mais obscuro é o do balanço efectivo, factual, sectorial, regional, e empiricamente embasado, do papel estruturante do escravidão. Há muito literatura recente a recomendar uma leitura mais diversificada e com mais cambiantes deste fenómeno. Por outro lado, há que não transformar os colonos em colonizados, expulsando da história os nativos (e escravos), que, esses, sim, eram os verdadeiros colonizados ...



4. CPH - Na sua opinião, quais são os principais debates que tem mobilizado os pesquisadores do Antigo Regime?

AMH: Um deles é o que acabo de referir. A matriz da sociedade de Antigo Regime pode ser utilmente aplicada a uma sociedade “tropical”, como o Brasil ? Eu creio que sim, desde que inteligentemente e com o sentido da plasticidade das formas civilizacionais. Também me parece interessante valorizar plenamente a ideia de pluralidade de poderes e de linhas de conflito na sociedade pré-revolucionária , procurando que as oposições tradicionais – portugueses (?)-brasileiros(?), livres-escravos, não ocultem a riqueza do imenso jogo de conflitos sociais – regionais, de género, de estrato social, corporativos, religiosos (dentro do catolicismo), de bandos locais. Também a historiografia portuguesa já descobriu finalmente que, mesmo durante a monarquia dual, a oposição português-espanhol era pouco significativa. E, no entanto, tinha havido a tendência para fazer girar em volta dela todo o conflito e agitação na primeira metade do séc. XVII.



5. CPH - O senhor entende que no antigo regime governar é julgar?

AMH: Esse era o modo como até ao séc. XVIII se viam as coisas, no domínio do poder. E, de facto – com excepção da lata política -, o modo como o poder central podia chegar às periferias era por meio dos tribunais, já que praticamente não existiam extensões permanentes da administração. Outra coisa é saber se os tribunais se acomodavam aos padrões de julgamento do direito oficial. Creio que não. O Estado administrativo, como o conhecemos hoje, é uma criação tardia, dos finais do séc. XVIII e, depois, do séc. XIX.. Por outro lado, num contexto social em que vários poderes coexistiam, os conflitos – quando não se resolviam à paulada ... – tinham que ser resolvidos judicialmente, pois faltava um efectivo poder superior e omni-regulador.

6. CPH - A tradição política do antigo regime em Portugal era assentada pelo caráter jurisdicional e corporativo. E no Brasil colonial que tinha sua economia forjada na mão-de-obra escrava, toda essa flexibilidade jurídica era o principal elemento da solidariedade das “famílias” que ocupavam o poder?

AMH: Tendo a crer que sim. A sociedade brasileira parece-me obedecer a um modelo de Antigo Regime, com um poder doméstico hipertrofiado pela enorme dimensão das comunidades domésticas nas zonas de engenhos e fazendas e com zonas de poder muito pouco estruturado – do tipo do “poder de fronteira” –, nas zonas mais periféricas. Nas regiões de mineração, com recurso massivo a trabalho escravo pouco integrado nas unidades domésticas, aí estaria o pólo em que o modelo escravista desempenha uma função estruturante mais forte.



7.CPH- Como o senhor definiria as relações entre o poder à cultura e a religião no Antigo Regime?

AMH: Segundo um modelo de indiferenciação. Como ensinou N. Luhmann, a diferenciação respectiva (Ausdifferenzierung) destas várias esferas é um fenómeno da modernidade. Antes, os diversos planos estavam encavalitados e condicionados mutuamente.



Idealização:
Carlos Eduardo de Medeiros Gama
Leni Ferreira Theodoro