[Desenho de arquitetura de uma nau de transporte de escravos] Grav. Anon.Negres a fond de calle. Des. Rugendas, Del. Deroi, Lit. de Engelmann. In.: RUGENDAS, Johann Moritz. Voyage pittoresque dans le Brésil. Paris: Engelmann, 1835. Tradução de: Das merkwurdigste aus der malerischen reise in Brasilien. Division 4e., Planche 1.

domingo, 28 de dezembro de 2008

LUIZ CARLOS SOARES

3º CICLO DE PERGUNTAS AOS HISTORIADORES
Dezembro de 2008.










LUIZ CARLOS SOARES




Graduação em História (Licenciatura e Bacharelado) e mestrado pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Doutorado na University College London, Inglaterra (tendo defendida a tese intitulada Urban Slavery in Nineteenth-Century Rio de Janeiro, em janeiro de 1988.) Professor do Departamento de História da UFF.

Endereço para acessar Currículo Lattes:

Principais obras publicadas:

Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH/ Marco Zero, vol. 8, n° 16, março/agosto de 1988, pp.107-142.

Rameiras, Ilhoas, Polacas... A Prostituição no Rio de Janeiro do Século XIX. São Paulo, Ed. Ática, 1992.


Do Novo Mundo ao Universo Heliocêntrico: os Descobrimentos e a Revolução Copernicana. São Paulo, Ed. Hucitec, 1998.

A Albion Revisitada: Ciência, Religião e Comercialização do Lazer na Inglaterra do Século XVIII. Rio de Janeiro, Faperj – Ed. 7Letras, 2007.


O "Povo de Cam" Na Capital do Brasil: A Escravidão Urbana no Rio de Janeiro do Século XIX. Rio de Janeiro, FAPERJ - Ed. 7Letras, 2007.

Organizou a coletânea Da revolução Cientifica aBig-Business Science”: Cinco Ensaios de História da Ciência e da Tecnologia. São Paulo – Niterói, Ed. Hucitec - Eduff, 2001.



1- CPH - Ao longo do século XIX a sociedade carioca passou por períodos agitados: a chegada da família real, o fim do tráfico atlântico de escravos, o aumento do tráfico interprovincial, aumento da imigração e a guerra do Paraguai. O que a historiadora Keila Grimberg em “O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças.”-Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p.57. Chamou de “desmonte da escravidão enquanto instituição legitimada e amplamente disseminada.”. Como o senhor, historiador que trabalhou com a sociedade escravocrata do Século XIX, vê esses fatores e suas brutais mudanças na relação senhor e escravo?

LCS: Para início de conversa, gostaria de dizer que os fatores mencionados na pergunta seriam tópicos para um curso inteiro sobre a história da cidade do Rio de Janeiro (e pode-se dizer da sociedade brasileira) no século XIX. Portanto, uma resposta concisa sobre estes fatores é praticamente impossível, em virtude da complexidade de cada um deles, embora relacionados. Eu teria que escrever um artigo ou um ensaio para falar da articulação entre eles.
Por outro lado, não gosto de utilizar o termo “sociedade carioca” para o século XIX, pois este termo só se generalizaria como adjetivo do natural da cidade do Rio de Janeiro, ou de qualquer coisa relativa a esta cidade, somente no século XX, provavelmente depois dos anos 1920. O próprio Machado de Assis e outros escritores que viveram no século XIX se referiam aos habitantes da cidade como “fluminenses”. Há um conto de Machado de Assis em que ele se refere a uma ponte que um dia iria “unir os fluminenses de ambos os lados”. Um dos times de futebol mais antigos do Rio de Janeiro não foi chamado aleatoriamente de “Fluminense Football Club”. Isso é uma clara alusão a uma entidade clubística que pertencia à cidade do Rio de Janeiro.
Mas, voltando a nossa questão. Acho que há um grande divisor de águas na história da cidade do Rio de Janeiro e da sociedade escravista brasileira no século XIX, que é a cessação definitiva do tráfico de escravos africanos em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós. O “desmonte da escravidão” começou a se processar justamente a partir daí, em virtude da impossibilidade de reposição de mão de obra escrava em grande escala provocada pela cessação do tráfico africano. Com isso me alio a outros historiadores como Fernando Novaes, Luís Felipe Alencastro e Robert Conrad, que reconhecem uma importância estrutural para este tráfico de mão-de-obra cativa. Era através dele que se dava majoritariamente a reposição do braço escravo visto que a reprodução interna era insuficiente para atender às demandas das áreas escravistas em expansão, sobretudo no Sudeste cafeeiro. Embora alguns historiadores mais recentes tenham apontado, acertadamente, a existência do fenômeno da família escrava, o que indica, num certo nível, a possibilidade da reprodução interna da mão-de-obra cativa, creio que não se pode superestimar este fator e diminuir a importância do tráfico africano na reposição desta mão-de-obra e na reprodução estrutural do próprio escravismo.
Na realidade, a desestruturação da sociedade escravista se inicia com o fim do tráfico de escravos africanos e este foi o primeiro golpe nos interesses dos grupos escravistas dominantes, que evitaram a “débâcle” imediata com a alternativa do tráfico interno de escravos (inter e intra-provincial). Mas, mesmo assim o tráfico interno não conseguiu suprir as necessidades de mão-de-obra com a mesma eficácia que o tráfico africano. Inclusive, em virtude das dificuldades políticas que se colocaram para ele. Não resta a menor dúvida de que a partir da Lei Eusébio de Queirós, os setores que se opunham à escravidão e defendiam a substituição do braço cativo pelo trabalho livre foram se fortalecendo paulatinamente até conseguirem a aprovação da Lei Rio Branco de 1871, também conhecida como “Lei do Ventre Livre” por libertar todos os filhos de cativas, que inviabilizou a reprodução da escravidão por meios naturais e indicava o fim gradual da escravidão com a morte futura daqueles que se encontravam na condição de escravos. Pode-se dizer que a partir da Lei do Ventre Livre o Movimento Abolicionista cresceu consideravelmente, sobretudo aqueles setores que advogavam a abolição imediata e incondicional da escravidão em nosso país. Nos anos 1880, acompanhando a intensificação da crise do escravismo, o Movimento Abolicionista cresceu consideravelmente, inclusive com setores mais radicalizados que invadiam fazendas e promoviam fugas de cativos em massa, e pode-se dizer que esta luta acelerou o fim da escravidão em 1888. Obviamente, os setores escravistas ainda tentaram uma ação protelatória com a aprovação pelo Parlamento da Lei Saraiva-Cotegipe, em 1885, conhecida como “Lei dos Sexagenários”, que foi considerada uma grande “piada” pela imprensa e pelo Movimento Abolicionista. A intensificação da ação dos setores mais radicais do Abolicionismo, com a destruição de cafezais e canaviais, com a fuga de escravos e a formação de quilombos, levou à conversão dos fazendeiros do Oeste Novo paulista a optar pela solução da mão-de-obra imigrante nas áreas mais dinâmicas da cafeicultura e este foi o golpe final na escravidão e nos interesses das antigas áreas cafeicultoras do Vale do Paraíba e do Oeste Velho paulista. Pode-se dizer que, com isso, o “desmonte da escravidão” se completa, mas, ao mesmo tempo, condicionou o Pós-Abolição num horizonte que não foi sonhado pelos Abolicionistas, que pregavam uma série de reformas sociais que deveriam ser implementadas com o fim do cativeiro. Mas, estas ficaram apenas em seus sonhos.

2- CPH - Aos escravos não era permitido possuir sobrenome, firmar contrato, dispor de sua vida, testemunhar contra livres ou escolher seu trabalho ou empregador. Essas distorções legais somadas ao aumento da racialização das relações sociais e a hierarquização entre cativos, libertos e livres fizeram com que o status de livre fosse perseguido com sacrifício e estratégias por muitos cativos e seus familiares?


LCS: Primeiramente, estas restrições legais em relação aos escravos, que são apontadas na pergunta, não podem ser entendidas, na lógica da sociedade escravista”, como “distorções”. Elas o são dentro de um outro referencial crítico da escravidão e dos mecanismos de controle social (excludentes) existentes na sociedade escravista. Um outro detalhe os escravos podiam, sim, atuar como testemunhas nos processos criminais ou civis única e exclusivamente na condição de “testemunhas informantes”. Não podiam ser “testemunhas qualificadas”, condição esta reservada somente para os indivíduos livres.
Evidentemente, a liberdade legal foi um sonho perseguido por muitos cativos, que desenvolveram uma série de estratégias e aproveitaram-se das “brechas” permitidas pela sociedade escravista para consegui-la. Pode-se dizer que a liberdade legal – através da obtenção gratuita ou compra de alforria – era uma possibilidade efetiva da sociedade escravista, que funcionava como uma grande estratégia de controle social e senhorial e obtenção da aquiescência dos cativos em relação às situações do próprio cativeiro. A obtenção da carta de alforria por muitos escravos também esteve envolvida em situações de muita adversidade para eles, como por exemplo, a obtenção condicional de alforria que estabelecia uma liberdade não imediata, condicionada à morte do senhor ou algum parente dele, ou a libertação de escravos idosos ou doentes pelos senhores, que não queriam mais arcar com gastos em sua manutenção.
Embora o fenômeno da alforria não fosse nada desprezível na sociedade escravista, esta não era generalizada e somente uma parcela diminuta de cativos teve acesso a ela. Obviamente, poderemos “pinçar” uma série de exemplos de libertos ou ex-escravos, ou mesmo seus descendentes, que obtiveram algum sucesso profissional e boa condição financeira, mas estes foram extremamente minoritários. A grande maioria dos libertos permaneceu em condições de vida bastante adversas, desenvolvendo praticamente as mesmas tarefas profissionais que desenvolviam antes, habitando casebres, zungus ou cortiços, como na cidade do Rio de Janeiro, tendo uma parca dieta alimentar, vestindo-se maltrapilhamente, enfrentando doenças e mutilações decorrentes do trabalho pesado, etc. Para muitos libertos, a grande satisfação era poder calçar um par de sapatos, direito este que era vedado consuetudinariamente aos escravos e que se tornava um símbolo de liberdade para eles.
Outro elemento de restrição aos libertos era a cor de sua pele, fossem eles negros ou mulatos. Muitas vezes, libertos negros ou mulatos eram confundidos com escravos pela polícia simplesmente porque estes não eram efetivamente em número considerável, como também possuíam as cores dos indivíduos escravizados. A situação do cativeiro, ou de ter passado por ele, levou a elementos concretos de racialização que geraram uma série de preconceitos contra negros e mulatos, que sobreviveram ao fim da escravidão e estão presentes até os dias de hoje na sociedade brasileira.
No próprio século XIX, dizia-se que os negros e mulatos escravos só trabalhavam porque eram obrigados a isso. Para a ideologia escravista, o açoite e diversos instrumentos de suplício e tortura se constituíam em elementos fundamentais da “pedagogia senhorial”. Tão logo, viam-se distantes do cativeiro, os negros e mulatos recusavam a disciplina do trabalho e se voltavam para a vagabundagem ou a vadiagem. Posteriormente, esta argumentação seria crucial para justificar a imigração européia e a substituição de negros e mulatos em diversas áreas de trabalho pelos portugueses, espanhóis, italianos, alemães, etc., que vinham para as cidades e as áreas rurais brasileiras, desencadeando um processo de “branqueamento” em muitas regiões do país. No Pós-Abolição e no início do século XX, uma versão mais vulgar da nova ideologia criada iria associar o trabalho à “coisa de branco”. Passava-se a dizer quando alguém saia para o trabalho que “hoje é dia de branco”. Este estigma ainda acompanha a população afro-brasileira.


3- CPH - A historiografia atual faz restrições pertinentes e devidas aos Relatos dos Viajantes, pelo motivo que engloba uma visão preconceituosa e pronta do Brasil no século XIX. Em relação aos viajantes, como o senhor avalia a obra de John Armitage ou João Armitage: “A História do Brazil: Desde a chegada da Real Família de Bragança, em 1808, até a abdicação do Imperador D. Pedro I, em 1831” inglês que viveu de 1828 a 1835 na cidade do Rio de Janeiro?

LCS: Primeiramente, é importante assinalar que não somente os viajantes tinham uma “visão preconceituosa e pronta do Brasil”. Muitos brasileiros – quer dizer homens livres e letrados nascidos no país – compartilhavam desta mesma visão, pois tinham os mesmos referenciais eurocêntricos dos viajantes. Durante boa parte do século XIX, muitos liberais brasileiros praticamente atribuíam os “males da escravidão” e da “nossa sociedade” aos próprios negros africanos, que para eles eram “incultos”, “incapazes para o progresso”, “lascivos”, etc. Praticamente, eximiam os brancos de origem européia de responsabilidades sobre os efeitos que a escravidão provocada no país e esta sua visão foi a base para as políticas imigrantistas da segunda metade do século e da substituição do braço escravo por trabalhadores europeus em diversas atividades rurais e urbanas.
No caso de John Armitage, penso que há uma diferença em relação aos relatos de “viajantes” que vieram para o Brasil como turistas e permaneceram algum tempo. Mesmo entre os “viajantes”, existem aqueles que não podem ser considerados dessa forma, pois viveram no país por muitos anos, como John Luccock, Jean-Baptiste Debret Johann Moritz Rugendas, etc. O próprio Armitage viveu no país por quase oito anos. Mesmo que estes estrangeiros tenham elaborado relatos com impressões sobre o Brasil com uma perspectiva eurocêntrica, seus livros e trabalhos são, para mim, fontes importantíssimas de consulta no que se relaciona ao entendimento de diversos aspectos da vida brasileira. Obviamente, o historiador profissional tem que se utilizar de todo o seu instrumental teórico-metodológico para obter informações relevantes destas fontes (como aliás de todos os outros tipos de fontes) que podem ser valiosas para a análise que ele realiza.
A diferença entre Armitage e os outros “viajantes” se situa no fato de que ele não procurou fazer apenas um relato das “coisas pitorescas” ou das “excentricidades” de um país escravista, mas procurou elaborar uma narrativa histórica com base no entendimento de história que se tinha no início do século XIX, não muito diferente, na minha opinião, da narrativa de nomes consagrados da historiografia deste século. Portanto, vejo uma dupla possibilidade na utilização da obra de Armitage: como fonte de informação histórica (suscetível como todas as outras fontes aos rigores da crítica histórica) e como objeto de análise historiográfica, por se tratar de um livro que se coloca no universo da narrativa histórica.


4- CPH - No livro do senhor O “POVO DE CAM” Na CAPITAL DO BRASIL: A Escravidão Urbana no Rio de Janeiro do Século XIX. Rio de Janeiro, Faperj -Editora 7Letras, 2007. Logo na Introdução do livro na página 18, o senhor define os futuros estudos que os novos Historiadores devem abordar sobre a escravidão na cidade do Rio de Janeiro em todo século XIX, no antes e depois da Abolição em 1888. O senhor analisa a contribuição de Historiadores como Mary Karasch e Leila Algranti, além das “críticas e revisões a luz do conhecimento proporcionado por novas fontes ou novas ou diferentes abordagens teórico-metodológicas.” Como o senhor vê esse refino e sofisticação da Historiografia brasileira sobre a escravidão urbana?

LCS: Os três primeiros trabalhos que problematizaram a escravidão urbana no Rio de Janeiro foram os de Mary Karasch, Leila Algranti e a minha tese de doutoramento, defendida no University College London em 1988. O livro de Mary Karasch aborda diversos aspectos da escravidão no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX e o de Leila Algranti numa conjuntura mais específica, que foi o Período Joanino. Na minha tese, que se transformou quase vinte anos depois no livro O “Povo de Cam” na capital do Brasil, procurou estudar diversos aspectos da escravidão na cidade a partir do “divisor de águas” representado pela cessação definitiva do tráfico negreiro em 1850. Nesse sentido, procurei abordar a estrutura e a dinâmica da escravidão no Rio de Janeiro em duas conjunturas diferentes, quer dizer, antes e depois da abolição do tráfico africano.
Na ocasião das comemorações do centenário da abolição da escravidão no Brasil, em 1988, muitos trabalhos foram publicados e apresentados em simpósios e congressos abordando os mais diversificados aspectos da escravidão urbana em diversas cidades do país, trazendo novas problemáticas e novas abordagens de estudo. Esse movimento continuou posteriormente e existe ainda hoje. Obviamente, vejo isso com muitos bons olhos, como uma tendência historiográfica bastante positiva.
Entretanto, uma das razões que me motivaram a publicar o meu livro, quase vinte anos depois dele ter sido apresentado como tese de doutoramento, foi a inexistência de trabalhos mais recentes que procurassem abordar a escravidão urbana na mesma perspectiva mais global, que eu adotei (e também Karasch e Algranti), enfatizando o mercado interno de escravos, a população cativa, as diversas atividades econômicas, as tentativas de controle social, a rebeldia escrava, a manumissão e a liberdade, etc.
Desse modo, achei que ainda existia um “espaço” para a divulgação do meu estudo e, em muitos aspectos, ele se apresenta bastante atual, pois muitos dos novos trabalhos (ou a produção historiográfica mais recente no campo da escravidão urbana) se constituem de estudos mais específicos ou relacionados a aspectos particulares do fenômeno da escravidão nas cidades. Portanto, sinto falta de trabalhos que articulem uma perspectiva de entendimento mais global da escravidão urbana (ou mesmo rural) com as abordagens teórico-metodológicas renovadas dos estudos específicos mais recentes. Talvez, esta seja a tarefa dos historiadores de hoje e do futuro interessados na problemática da escravidão.



5-CPH - No livro do senhor O “POVO DE CAM”, na página 266 o senhor afirma que “as autoridades policiais estavam em alerta para a possibilidade de agentes estrangeiros, particularmente às Sociedades Antiescravistas da Grã-Bretanha, infiltrarem-se no país e insuflarem os escravos do Rio de Janeiro e de outras localidades à rebelião.” Qual a analise do senhor sobre a política da Grã-Bretanha na proibição do tráfico de escravos no século XIX e depois na partilha do Continente africano?

LCS: A perspectiva de análise que tenho defendido, há algum tempo, se relaciona ao argumento da necessidade da Grã-Bretanha proibir o tráfico atlântico de escravos porque este, em virtude da guerra contínua travada em diversas áreas do continente africano, era um elemento de desestruturação populacional de diversas sociedades deste continente. A escravização em massa de africanos se dava fundamentalmente através das guerras de estados mais organizados e mais fortes militarmente contra outros estados e comunidades, em sua maioria, sem os mesmos níveis de organização política e militar. Em geral, os traficantes europeus de diversas nacionalidades recebiam os africanos escravizados em suas feitorias no litoral do continente, onde realizavam o escambo e pagavam aos chefes traficantes africanos através de aguardente, rum, fumo, tecidos, quinquilharias, armas e produtos diversos.
Na segunda metade do século XVIII, inclusive por conta do crescimento exponencial da produção nas áreas escravistas das Américas para atendimento da crescente demanda dos mercados europeus, o tráfico atlântico de escravos se tornou dramático e as guerras de escravização no continente africano assumiram uma dimensão jamais vista, sobretudo por conta da utilização de armas de fogo (obtidas no escambo com os traficantes europeus) pelos estados escravizadores. Entretanto, muitas sociedades e comunidades resistiam à ação dos “preadores”, o que aumentava enormemente a mortandade. Há estimativas que apontam que, para cada africano aprisionado, escravizado e trazido para as Américas, cinco africanos ficavam “pelo caminho”. Quer dizer, cinco deles morriam na resistência à ação dos “preadores” ou na própria travessia atlântica.
Por outro lado, há estimativas de historiadores que apontam uma variação de 10 a 15 milhões de escravos africanos que foram introduzidos no continente americano dos séculos XVI ao XIX, o que indicaria, por sua vez, a morte de 50 a 75 milhões de africanos neste processo de resistência à ação dos escravizadores. Isso significa que o tráfico atlântico de escravos foi responsável por um dos maiores genocídios da história e muitas populações da África de hoje merecem muito mais do que um “pedido de desculpas” por parte dos países que outrora traficavam ou recebiam escravos deste continente.
No fim do século XVIII e início do século XIX, as autoridades da Grã-Bretanha perceberam o enorme entrave representando pelo tráfico de escravos para a expansão dos seus interesses comerciais e estratégicos na África. O tráfico de escravos fomentava a guerra crescente e esta a desestabilização populacional ou a desestruturação de sociedades e comunidades africanas. Portanto, era importante acabar com o tráfico atlântico para acabar com a guerra e o quadro populacional caótico do continente. É claro que as populações africanas não se transformariam automaticamente em “consumidores” dos produtos britânicos. Mas, estas populações, sem o quadro de guerra permanente, poderiam ser fixadas em seus territórios e desenvolver atividades econômicas mais adequadas aos interesses do comércio britânico, produzindo matérias-primas ou gêneros alimentícios. Para as forças militares britânicas penetrarem no continente africano, teriam que acabar primeiramente com o tráfico de escravos e, em segundo lugar, efetuar a conquista e a ocupação efetiva de diversos territórios, submetendo-os ao seu domínio colonial.
Este processo não foi tão simples assim e a Grã-Bretanha teve que enfrentar, ao logo do século XIX, diversas resistências tanto dos estados escravizadores, dos traficantes atlânticos, dos plantadores escravistas americanos, como também das demais potências européias que procuravam participar também da “partilha” da África. Os britânicos conseguiram tomar a cidade de Lagos, na Nigéria, somente em 1862, e as regiões do Travaal e Orange, na África do Sul, no início do século XX, quando saíram vitoriosos na Guerra dos Boers. Estas áreas se tornaram pontos importantes do domínio colonial britânico no continente africano, mas antes foi preciso que o tráfico de escravos e a própria escravidão fossem paulatinamente abolidos no continente americano.


Idealização e Coordenação:

Carlos Eduardo de Medeiros Gama,

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Leni Ferreira Theodoro, Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6828291289896778

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